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Tony Marcus - Poeira


O chão vermelho emanava poeira a cada passo. O velho caminhava sob o sol ardente do meio dia tendo por companhia apenas o âmago de seu ser. O suor lhe besuntava o corpo colando suas vestes na pele bronzeada marcada pelo tempo e cheia de rugas e cicatrizes de uma dura vida que chegava ao fim. O chapéu velho e carcomido pendia sobre sua fronte ocultando olhos tristes e uma face austera. “Tudo acabava em poeira no final” pensou enquanto a estrada fluía ao seu redor.


Não havia escolhido esse negócio de ser velho, simplesmente o tempo o marcou sem dó nem piedade. Seus pés estavam lentos, seus ombros lhe pesavam, sua visão estava cansada e em resumo tudo lhe era tormentoso em seu físico ressequido. Somente sua memoria resistia às malícias do tempo, tal qual uma palmeira que é vergada pela força impetuosa do vento para em seguida tornar a sua posição original. Sua memória era forte sendo por esse mesmo motivo a sua fraqueza.


O fato é que o velho preferia toda a intempérie que o tempo causava a seu corpo a ter que enfrentar o peso de suas memórias. Não temia as memórias por conta de algo de errado praticado no passado, pois o velho podia se gabar de uma vida irrepreensível, ele temia o peso de tudo aquilo que havia passado tudo o que ele tinha perdido.


Lembrava claramente do rosto de sua mãe e de suas carícias, dos conselhos de seu velho pai, da algazarra de seus irmãos e irmãs, dos beijos molhados de sua avó, das cartas e confidências trocadas com sua namorada, da emoção de seu casamento, da alegria de segurar seu filho recém-nascido nos braços, da felicidade de vê-lo estudando e se formando, do abraço de seus netos e do prazer de ver um bisneto.


Lembrava também das festas no povoado, do som do violão dos velhos na calçada, da irritação de ser acordado na madrugada de primeiro de São João, dos cantos nas igrejas, das histórias contadas em noites sem energia, das lendas e crendices sustentadas pela voz dos experientes, do espanto dos incautos ao ouvir as reprimendas de suas morais, da primeira casa fixada em cada canto antes deserto, de cada gota de suor e lágrimas derramada na construção do futuro e do espanto ao constatar que o futuro havia chegado tão rápido.


Doía lembrar-se destas coisas. Era torturante saber que tudo pelo qual havia lutado ou amado iria por fim se acabar. Tanto labor de uma vida jogado ao ar. O velho percebia que a vida era uma estrada de terra vermelha e as memorias e feitos eram como uma poeira levantada pelos pés para por fim morrer ao vento do tempo. Era triste entender a realidade dos fatos e perceber que tal qual a poeira da estrada em que se encontrava tudo que lhe marcava como alguém estava por acabar. Era terrível saber que ninguém se daria ao menor trabalho de lembrar-se daquele velho ou de suas coisas velhas, ou ainda de suas velhas histórias.


Talvez se ainda fosse jovem. Talvez, e somente talvez, se pudesse ter outra chance. Se apenas pudesse voltar atrás ele faria tudo diferente e viveria o sabor de cada dia e de cada conquista de uma forma diferente.


​O velho por fim parou e ao parar percebeu que a poeira começava a cessar. Entendeu então a lógica que lhe havia custado entender: Só havia poeira se houvesse uma caminhada, e só poderia existir uma caminhada se existisse uma estrada. Ao compreender sorriu e retomou o caminho.

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