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Tony Marcus - As presas do inverno


Ignar observava atentamente à presa. O grande alce escavava a neve a procura de alimento: ervas e raízes encobertas pelo gelo da temporada invernal. O animal devia pesar cerca de 600 quilos e possuía quase dois metros de altura, seria um ótimo premio de caça para a sua aldeia. O guerreiro estava na Grande Wahell, a maior floresta das terras altas, a cerca de sete dias e precisava voltar com alguma caça para alimentar sua família e ajudar com os deveres da aldeia.


O animal bufava pastando tranquilamente, alheio ao perigo iminente. Com muita cautela o guerreiro colocou uma flecha chanfrada no arco e esticou envergando a madeira ao máximo. De sua posição, pendurado em cima de um galho em um frondoso carvalho, Ignar era capaz de disparar de forma letal em qualquer criatura ruminante e aquele alce estava na mira. O suor despontou-lhe mesmo em meio ao frio, pois, o esforço do guerreiro para manter a envergadura do arco de longo alcance era fenomenal. Os segundos se arrastavam e o homem esperava o momento certo enquanto a presa calmamente virava o flanco e deixava a mostra o coração.


Homem e animal pareciam ligados por uma teia invisível, o ar estava carregado com o momento oportuno que se aproximava. A floresta que ululava de vida por um momento calou-se como alguém que prende o folego ao mergulhar. Por um momento o alce compreendeu que havia algo errado e ao levantar o olhar fitou o seu algoz e pode entender em que situação se encontrava. A respiração de ambos travou e seus corações bateram em um só movimento. Estavam conectados. Este era o “Folego da Caçada”, sobre o qual ensinavam os antigos mestres. Em poucos segundos tudo voltou: o vento forte, a neve, os sons da floresta e todo seu movimento. No entanto o alce achava-se agora sobre o chão e vergava torrentes vermelhas de um ferimento no flanco.


O guerreiro caiu de cima de seu santuário de sentinela. Os músculos queimavam por conta do grande esforço. A fome prolongada o deixava fraco, e ser fraco nas terras altas significava morte. Ignar sabia que seu tempo era estreito, o sangue que afluía ao chão era testemunha de um banquete e em pouco tempo ele poderia deixar de ser o caçador e se tornar a caça.


Como havia aprendido caiu de joelhos frente à presa abatida e chorou pela vida que havia deixado à floresta. Chorou e agradeceu ao alce que naquele momento dava a sua carne e sua vida para alimentar o seu povo. Em seu choro clamou aos deuses de seus pais e agradeceu pela vitória conquistada, pedindo proteção em sua jornada de volta ao lar e a sua família.


Os guerreiros Kog’urr não tinham costume de se afastar tanto da aldeia, pois as terras altas eram fartas em alimentos e caça, no entanto aquela estação invernal tornou tudo diferente. O frio nunca havia sido tão intenso e as noites tinham o dobro de tamanho. As terras alagadas onde ficava situada sua aldeia eram o ápice do frio por conta de seus incontáveis rios e depressões. Os animais em sua maioria haviam se afastado da região, outros migravam para o sul e outros hibernavam tornando a escassez de alimento uma realidade na estação fria. No entanto aquele ano era o pior que o guerreiro já vira, mesmo tendo visto trinta e nove invernos.


A região onde ele se encontrava ficava a oito dias de viagem de sua aldeia, era uma terra selvagem e perigosa. Havia naquelas paragens animais que caçavam humanos, plantas e seres extremamente venenosos, escarpas e buracos ocultos além de incontáveis perigos inomináveis. Além de tudo o frio era uma constante terrível e em uma noite longa podia matar um homem ou lhe congelar os membros forçando uma amputação ou uma incapacitação que o deixaria sem movimento. A escuridão era terrível e ao passar do meio dia se acentuava até um negrume sem fim da noite.


Era necessário agir rápido, pois já passava do meio dia e as temperaturas baixavam rapidamente. Ignar pousou o grande arco, sua espada e o martelo de batalha no chão e retirou de uma bolsa de couro que levava junto à cintura duas facas, uma de ponta fina para a retirada do couro e uma larga e afiada para o corte entre os ossos e pedaços de carne. O couro do alce era grosso e grudento instigando o caçador a usar bastante força para romper a sua estrutura. O trabalho era lento e complicado, pois era necessário separar os pedaços de melhor qualidade e resistência para suportar a longa viagem de volta. Retirar osso por osso e separar a carne exigiam força e concentração além de gerar cortes sobre os dedos, os quais eram vitimas da derrapagem da faca sobre a gordura do animal. Salgar a carne era outro processo que causava dor sobre os ferimentos abertos e tinha de ser feito meticulosamente ou a carne apodreceria e o esforço seria em vão.


Ao termino de uma hora Ignar tinha as bolsas de couro sangrentas e cheias de carne e gordura de alce. Um dos chifres do alce havia sido cerrado em sua metade e atado ao cinto de couro grosseiro do caçador. A carcaça do animal e grande parte de sua carne, a qual caçador nenhum conseguiria carregar, serviria de alimento aos lobos e animais noturnos. A tarde avançava e a noite começava a projetar suas sombras sobre a floresta. Era possível observar a mudança da temperatura nas espirais geladas que o vento começava a fazer. A verdadeira batalha começaria a partir daquele momento.


Fragmento do conto “As Presas do Inverno” que faz parte do livro Presas do Inverno a ser publicado em breve. Para acesso completo ao conto entre em contato com o autor através do e-mail tonymarcusufs@gmail.com.


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